sábado, 3 de julho de 2010

Theras e a sua cidade, Caroline Dale Snedeker


Aos 9 anos de idade, tive a primeira consciência de futuro. Foi aos 9 anos que decidi ser da História. Viver com a História...
Estava sentada na minha carteira. Na terceira classe. Em Moçambique. No Colégio António Barroso. Da carteira, no fundo da sala, observava as minhas colegas de turma. Estavam junto à secretária da professora, uma madre, no fim de uma aula. Havia grande agitação. Estavam muito animadas e perguntavam à professora se eram boas alunas. E eu? E eu? Sou boa a Aritmética? E a Gramática, madre, eu sou boa aluna? E a Desenho?
Eu, de longe, contemplava a cena. Também queria saber se seria ou não considerada boa aluna mas, orgulhosa como era, parecia-me indigno estar ali aos saltos à frente da secretária, a mendigar um elogio. Mantive-me à distância a observar.

A certa altura, a professora, no meio da confusão de cabeças e de braços que se agitavam, reparou em mim. E disse, erguendo a voz:
«E a Ana Paula é muito boa a História!».
Eu não disse nada, mas recebi de uma forma muito intensa aquelas palavras. Nos meus 9 anos, senti-me crescer por dentro e por fora. E, naquele preciso momento, eu decidi que a História iria ser, para sempre, o meu futuro. Mesmo que não soubesse o que era o futuro, eu senti que era na História e com a História que eu iria viver. Seria sempre muito boa a História.

Passaram-se anos. Parti de Lourenço Marques para Lisboa. Os meus heróis eram a Luluzinha, o Bolinha, o D. Afonso Henriques, o Egas Moniz, o Martim Moniz, a Lassie,o Rintintim, o Búfalo Bill, o David Coperfield, o Tom Sawer, o Júlio, o David, a Zé, a Ana, o Tim, o D. Nuno Álvares Pereira, o D.João I, a D. Filipa de Lencastre e toda a sua ilustre prole. Gostava muito de D. Pedro que tinha viajado muito. Gostava de todos aqueles heróis da mesma maneira.

Já em Lisboa, um dia, uma amiga da minha avó ofereceu-me um livro de aventuras. Chamava-se «THERAS E A SUA CIDADE». Com uma dedicatória.
Foi o livro mais intenso de toda a minha vida. Que li até à última página, para voltar, de novo, à primeira e desta de novo até ao fim do livro. Tinha 12 anos. Que, na minha geração, não correspondiam, de todo, aos 12 anos de qualquer jovem daquela idade nos tempos em que vivemos.
Não se pode dizer com exactidão que tenha lido o livro. Eu vivi o livro. Tornei-me o protagonista daquele livro. Chamava-me Theras e vivia em Atenas. No séc. V a. C. Aos sete anos, deixei o gineceu onde brincava com as minhas irmãs e iniciei a minha educação de jovem ateniense. Fui para a escola com Lampon, o meu pedagogo. Aprendi as primeiras letras, a cantar os poemas homéricos, a tocar lira, a fazer ginástica, a nadar junto ao porto do Pireu. Foi com o meu pai, Fídeas, que subi pela primeira vez à Acrópole. Onde vivia a minha adorada Atena, a deusa protectora da minha cidade. Que, muitas vezes, calçava as suas sandálias e descia do Olimpo à Grécia, para ajudar atenienses em dificuldades. Dei-lhe as minhas primeiras oferendas: favos e bolos de mel que antes tinha comprado com o meu pai na Ágora. Fui muito feliz em Atenas. Era uma cidade linda. Toda a sua cultura me fascinava.
Um dia, o meu pai partiu para a guerra. Contra os Persas. Contra Xerxes e Dario que ameaçavam a Grécia. Foi feito prisioneiro.
Então, chegou o meu tio. Vindo de Esparta. Dada as dificuldades da minha mãe, levou-me consigo para Esparta. Fui obrigado a partir. Deixei a minha casa, as minha mãe, as minhas irmãs, a minha amada Atenas.
Vivi em Esparta dois anos. E todos os dias senti a saudade de todos os meus. A saudade de tudo o que tinha aprendido em Atenas. Do amor pelo belo e pelas coisas sensíveis da vida.
Em Esparta não vivia em família, mas em aquartelamentos de rapazes. Horrorizavam-me as suas práticas violentas, o seu prazer pela guerra, os seus combates até à morte, a desumanidade com que tratavam os escravos. Eram valentes, mas não eram os meus. Desprezavam a coisas belas, as coisas sensíveis e os afectos. Cresciam a aprender a ser duros.
Um dia, fugi. Com Abas, um jovem que, como eu, não gostava da dura Esparta.
Atravessámos a pé o Peloponeso. Enfrentámos animais e salteadores. Mas a minha adorada Atena protegeu-me. Já quase perto de Atenas, quando estávamos já meios desfalecidos, cruzámo-nos com uma caravana de viajantes. Entre eles estava Heródoto. Que nos protegeu. Que nos contou histórias maravilhosas sobre outros povos. Sobre os Egípcios, sobre os Persas, sobre nós, os Gregos. Espalhados pela Ática, pelo Peloponeso, pelas ilhas, pela Ásia Menor e outros lugares. Depois, Heródoto levou-me a mim e a Abas até minha casa.
Reencontrei todos os meus. A minha cidade. A minha deusa. A minha mãe e irmãs. E o meu pai que estava salvo, depois de ter sido feito prisioneiro pelos Persas. O valente Fídeas ostentava com orgulho uma ferida na testa. Um mocho que tinha sido gravado com um ferro em brasa, na sua testa, pelos Persas. Para o marcar como ateniense e que ele agora ostentava com orgulho.
Voltámos à Acrópole. Para agradecer a Atena o nosso regresso.

Era assim a história daquele livro de aventuras que eu li aos 12 anos.
Tempos depois, frequentei o 3º Ano (actual 7ºano). Em Lisboa. No Colégio Académico.
Estava, de novo, sentada numa carteira da sala de aula. Lá atrás, para poder estar desatenta à vontade. E então comecei ouvir a minha professora de História. E o meu espanto crescia a cada palavra. A cada imagem que ela nos fazia observar, no manual escolar. A surpresa era imensa. Eu sabia tudo o que me estava a ser contado. Nunca tinha estudado nada sobre a Grécia, mas conhecia todos os nomes, todos os lugares, todos os deuses, tudo o que aquelas páginas da História contavam. Dizer que sabia tudo era pouco. Mais do que saber, eu sentia tudo o que ali estava escrito ou que estava a ser dito. Porque eu tinha vivido naquela cidade, naquele século. Era um ATENIENSE. Estava dentro do próprio livro de História...

Fiquei calada. Não falei na minha descoberta. Passado o espanto inicial, percebi que o conhecimento que eu estava a descobrir tinha origem no livro de aventuras que a amiga da minha avó me tinha dado um dia. Mas não o mostrei à professora. Para ela, seria apenas um livro. Não iria compreender. Para mim, era a minha cidade, a minha gente, a vida que eu vivera um dia.
E, naquele preciso momento, recordei o compromisso que fizera com a História aos 9 anos de idade. Percebi que era mais um sinal do futuro que me estava a ser dado. Daqui nasceu uma admiração profunda pela Cultura Clássica e a convicção de que o meu destino estava de novo nas mãos da História.
Quem sabe, se não seria Clio, a musa da História, a tecer a sua teia e a envolver-me nela...

2 comentários:

  1. Estou bastante surpreendida pela origem do nome. Quem diria que passados tantos anos, a prof. ainda tivesse tanto amor à (sua) História!

    Joana Regodeiro 10ºD

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  2. É verdade, Joana.
    Ainda está vivo, tantos anos depois.
    Prof. AP

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